sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Afra

Ressurges dos mistérios da luxúria,
Afra, tentada pelos verdes pomos,
Entre os silvos magnéticos e os gnomos
Maravilhosos da paixão purpúrea.

Carne explosiva em pólvora e fúria
e desejos pagãos, por entre gnomos
a virgindade - casquinantes momos
Ruído da carne já votada à incúria.

Votada cedo ao lânguido abandono,
Aos mórbidos delíquios como ao sono,
Do gozo haurindo os venenosos sucos,

Sonho-te a deusa das lascivas pompas,
A proclamar, impávida por trompas,
Amores mais estéreis que os eunucos.

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Musa Consolatrix

Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.

Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
Da íntima paz de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.

Musa consoladora,
Quando da minha fronte da mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!

Machado de Assis (1839 - 1908)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vítima triste da fortuna errante

XLVIII

Já por bárbaros climas entranhado,
Já por mares inóspitos vagante,
Vítima triste da fortuna errante,
Té dos mais desprezíveis desprezado:

Da fagueira esperança abandonado,
Lassas as forças, pálido o semblante,
Sinto rasgar meu peito a cada instante
A mágoa de morrer expatriado.

Mas, ah! Quem bem maior, se contra a sorte
Lá do sepulcro no sagrado hospício
Refúgio me promete a amiga Morte!

Vem, pois, ó nume aos míseros propício,
Vem livrar-me da mão pesada e forte,
Que de rastos me leva ao precipício!

Bocage (1765 - 1805)

Desalento

Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim


Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar


Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos

Vinícius de Moraes (1913 - 1980)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Versos de Amor

A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O velho do espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus...Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"O que fizeste de mim?!"
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

Mário Quintana (1906 - 1994)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Um caso a mais



Um caso a mais
Enquanto foi só um bom momento deu
Enquanto foi só um pensamento meu Deus
Deu só num caso forte a mais.

Enquanto se achava graça ao que se escondeu
E a horas eram mais longas do que a verdade fez
Pra ser só outro caso mais.

Enquanto for só ternura de Verão, eu vou
Enquanto a excitação der para um carinho, eu dou.

Traz
Uma leveza
Ah, mas com certeza
Eu dou
Um outro melhor bom dia

Trocamos o vento norte por vento sul
Enquanto demos risadas foi-se o azul
Nem sei qual deles foi azul demais.

Mas não ficará só a sensação de cor
Nem sei o que o coração irá dizer de cor
Se o Inverno for, depois, duro demais

Enquanto for só ternura de Verão, eu vou
Enquanto a excitação der para um carinho,eu dou

Traz
Uma leveza
Ah, mas com certeza
Eu dou
Um outro melhor bom dia

Enquanto for só ternura de Verão, eu vou
Enquanto a excitação der para um carinho, eu dou

Traz
Uma leveza
Ah, mas com certeza
Eu dou
Um outro melhor bom dia

Uma leveza
Ah, mas com certeza
Eu dou
Um outro melhor bom dia

Luis Represas

Amor me escreva...

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

(tradução: William Agel de Melo)

Vladimir Maiakovski (1893-1930)



terça-feira, 18 de novembro de 2008

Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca (1894 - 1930)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Segredos

Eu tenho uns amores - quem é que os não tinha
Nos tempos antigos ? - Amar não faz mal;
As almas que sentem paixão como a minha,
Que digam, que falem em regra geral.

- A flor dos meus sonhos é moça bonita
Qual flor entreaberta do dia ao raiar;
Mas onde ela mora, que casa ela habita,
Não quero, não posso, não devo contar!

Oh! Ontem no baile, com ela valsando
Senti as delicias dos anjos do céu!
Na dança ligeira, qual silfo voando
Caiu-lhe do rosto o seu cândido véu!

- Que noite e que baile! Seu hálito virgem
Queimava-lhe as faces no louco valsar,
As falas sentidas que os olhos falavam,
Não quero, não posso, não devo contar!

Depois indolente firmou-se em meu braço,
Fugimos das salas, do mundo talvez !
Inda era mais bela rendida ao cansaço,
Morrendo de amores em tal languidez !

- Que noite e que festa ! e que lânguido rosto
Banhado ao reflexo do branco luar !
A neve do colo e as ondas dos seios
Não quero, não posso, não devo contar !

A noite é sublime! Tem longos queixumes,
Mistérios profundos que eu mesmo não sei:
Do mar os gemidos, do prado os perfumes,
De amor me mataram, de amor suspirei!

Agora eu vos juro... Palavra!- Não minto!
Ouvi a formosa também suspirar:
Os doces suspiros que os ecos ouviram
Não quero, não posso, não devo contar!

Então nesse instante nas águas do rio
Passava uma barca, e o bom remador
Cantava na flauta: - "Nas noites d'estio
O céu tem estrelas, o mar tem amor !"

E a voz maviosa do bom gondoleiro
Repete cantando: "viver é amar !"
Se os peitos respondem à voz do barqueiro...
Não quero, não posso, não devo contar !

Trememos de medo... A boca emudece
Mas sentem-se os pulos do meu coração
Seu seio nevado de amor se entumece
E os lábios se tocam no ardor da paixão.

Depois... mas já vejo que vós, meus senhores,
Com fina malícia quereis me enganar;
Aqui faço ponto; - segredos de amores
Não quero, não posso, não devo contar!

Casimiro de Abreu (1839 - 1860)

O gosto do nada

Espírito sombrio, outrora afeito à luta,
A Esperança, que um dia te instigou o ardor,
Não te cavalga mais! Deita-te sem pudor,
Cavalo que tropeça e cujo pé reluta.

Conforma-te, minha alma, ao sono que te enluta.

Espírito alquebrado! Ao velho salteador
Já não seduz o amor, nem tampouco a disputa;
Não mais o som da flauta ou do clarim se escuta!
Prazer, dá trégua a um coração desfeito em dor!

Perdeu a doce primavera o seu odor!

O Tempo dia a dia os ossos me desfruta,
Como a neve que um corpo enrija de torpor;
Contemplo do alto a terra esférica e sem cor,
E nem procuro mais o abrigo de uma gruta.

Vais levar-me, avalanche, em tua queda abrupta?

Charles Baudelaire (1821 - 1867)

sábado, 15 de novembro de 2008

Lembranças de morrer

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade... é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Pouco - bem poucos... e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!

Álvares de Azevedo (1831 - 1852)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Inefável

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minh'alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial Sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
D'estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outra mais serenas madrugadas!

todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim, porque eu as amo
Na minh'alma volteando arrebatadas!

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Desejos

Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade(1902 1987)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Recordações

Lembras-te ainda dessa noite bela
Em que, donzela, te chegaste a mim?
Lembras-te? Dize... mas não tenhas pejo...
Que vai um beijo p'ra corar assim?...

Que linda noite! da montanha o vento
Tênue lamento suspirava então.
E nos teus lábios, no tremor, no medo
Lia o segredo de febril paixão.
Passava a lua pelo azul do espaço
Do teu regaço a namorar o alvor.
Como era terna no seu brando lume.
...Tive ciúme de ver tanto amor ...
Como dum cisne alvinitentes plumas
Iam de brumas a vagar nos céus,
Gemia a brisa - perfumando-a a rosa -
Terna, queixosa nos cabelos teus.
Que noite santa!... Sempre o lábio mudo
A dizer tudo, a respirar paixão;
De espaço a espaço um fervoroso beijo,
E após o pejo... e algum frouxo não.
Eu fui a brisa - tu me foste a rosa,
Fui mariposa - tu me foste a luz,
- Brisa - beijei-te - mariposa - ardi-me.
E hoje me oprime do martírio a cruz.
E agora quando da montanha o vento
Geme um lamento de infinito amor,
Busco debalde t'escutar as juras...
Não mais venturas... só me resta a dor.
Seria um sonho aquela noite bela?
Dize, donzela... Foi real... bem sei!...
Ai! não me negues, diz-mo a lua, o vento,
Diz-mo o tormento que por ti penei!...

Castro Alves (1847 - 1871)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Idealização da humanidade futura

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
— Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara étnicamente irracionais! —

Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

domingo, 9 de novembro de 2008

Este Quarto...

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa esse quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...

Mário Quintana (1906 -1994)

sábado, 8 de novembro de 2008

Metastasio

I

A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.
Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.

Casimiro de Abreu (1839 - 1860)

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Eterna Mágoa

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo Inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Metamorfose

Súbito pássaro
dentro dos muros
caido,

pálido barco
na onda serena
chegado.

Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.

E imensamente
o navegante
mudado.

Seus olhos densos
apenas sabem
ter sido.

Seu labio leva
um outro nome
mandado.

súbito pássaro
por altas nuvens
bebido.

Pálido barco
nas flores quietas
quebrado.

Nunca, jamais
e para sempre
perdido

o eco do corpo
no próprio vento
pregado.

Cecília Meireles (1901 - 1964)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Prefiro Rosas

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Fernando Pessoa (1988 - 1935)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Diamante Verdadeiro

Nesse universo todo de brilhos e bolhas
Muitos beijinhos, muitas rolhas
Disparadas nos pescoços das Chandon
Não cabe um terço de meu berço de menino
Você se chama grã-fino e eu afino
Tanto quanto desafino do seu tom
Pois francamente meu amor
Meu ambiente é o que se instaura de repente
Onde quer que chegue, só por eu chegar
Como pessoa soberana nesse mundo
Eu vou fundo na existência
E para nossa convivência
Você também tem que saber se inventar

Pois todo toque do que você faz e diz
Só faz fazer de Nova Iorque algo assim como Paris
Enquanto eu invento e desinvento moda
Minha roupa, minha roda
Brinco entre o que deve e o que não deve ser
E pulo sobre as bolhas da champanhe que você bebe
E bailo pelo alto de sua montanha de neve
Eu sou primeiro, eu sou mais leve, eu sou mais eu
Do mesmo modo como é verdadeiro
O diamante que você me deu.

Caetano Veloso

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Lugares Proibidos - Helena Elis

Enchantagem

de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo

esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima

de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito

pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito

que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar

tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece
verdade

o pau na vida
o vinagre
vinho suave

pense e te pareça
senão eu te invento por toda a eternidade

Paulo Leminski (1944 - 1989)

domingo, 2 de novembro de 2008

Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu neles sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas

-Teus olhos imorais,
Mulher que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!

Cesário Verde (1855 - 1886)

O Homem

-"No momento em que eu ia partir
Eu resolvi voltar"

Vou voltar!
Sei que não chegou a hora
De se ir embora
É melhor ficar...

Vou ficar!
Sei que tem gente cantando
Tem gente esperando
A hora de chegar...

Vou chegar!
Chego com as águas turvas
Eu fiz tantas curvas
Prá poder cantar...

Esse meu canto
Que não presta
Que tanta gente
Então detesta
Mas isso é tudo
O que me resta
Nessa festa!
Nessa festa!...

Eu!
Vou ferver!
Como que um vulcão em chamas
Como a tua cama
Que me faz tremer...

Vou tremer!
Como um chão de terremotos
Como amor remoto
Que eu não sei viver...

Vou viver!
Vou poder contar meus filhos
Caminhar nos trilhos
Isso é prá valer...

Pois se uma estrela
Há de brilhar
Outra então tem que se apagar
Quero estar vivo para ver
Oh!
O sol nascer!
O sol nascer!
O sol nascer!...

Eu!
Vou subir!
Pelo elevador dos fundos
Que carrega o mundo
Sem sequer sentir...

Vou sentir!
Que a minha dor no peito
Que eu escondi direito
Agora vai surgir...

Vou surgir!
Numa tempestade doida
Prá varrer as ruas
Em que eu vou seguir
Oh!
Em que eu vou seguir!
Em que eu vou seguir!...

Raul Seixas (1945 - 1989) / Paulo Coelho