terça-feira, 30 de setembro de 2008

Meu Anjo

Meu anjo tem o encanto, a maravilha
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!

Álvares de Azevedo (1831 - 1852)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Remorso

Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!

Olavo Bilac (1865 - 1918)

domingo, 28 de setembro de 2008

Musa dos olhos verdes...

Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;

Tu que junto do berço o infante cinges
C'os fúlgidos cabelos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;

Tu que fazes pulsar o seio às virgens;
Tu que às mães carinhosas
Enches o brando, tépido regaço
Com delicadas rosas;

Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!

Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.

Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!

Machado de Assis (1839 - 1908)

sábado, 27 de setembro de 2008

A fome e o amor

A um monstro

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Panorama Além

Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia.
Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei de nada.
Nem de ódio, nem amor. Tédio? Melancolia.
-Existência parada. Existência acabada.

Nem se pode saber do que outrora existia.
A cegueira no olhar. Toda a noite calada
no ouvido. Presa a voz. Gesto vão. Boca fria.
A alma, um deserto branco: -o luar triste na geada...

Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo.
Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo!
Ninguém.... O ermo atrás do ermo: - é a paisagem daqui.

Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto...
Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto...
Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?

Cecília Meireles (1901 - 1964)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Cesário Verde (1855 - 1886)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Capricho

Ai! quando
Brando
Vai o vento
Lento
À lua
Nua
Perpassar sutil;
E a estrela
Vela,
E sobr'a linfa
A ninfa
Suspira
Mira
O divinal perfil;
Num leito
Feito
De cheirosas
Rosas,
Risonhos
Sonhos
Sonharemos nós;
Revoltos,
Soltos
Os cabelos
Belos,
Vivace
A face,
Tremulante a voz
Cantos
E prantos
Que suspira
A lira,
A alfombra,
À sombra,
Encontrarei pra ti;
Celuta,
Escuta
De meu seio
O enleio...
Vem, linda,
Ainda
Há solidões aqui.

Castro Alves (1847 - 1871)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Feliz Aniversário

Para minha esposa, que faz aniversário hoje, um feliz aniversário:

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda (1904 - 1973)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Grande Amor

Grande amor, grande amor, grande mistério
Que as nossas almas trêmulas enlaça…
Céu que nos beija, céu que nos abraça
Num abismo de luz profundo e sério.

Eterno espasmo de um desejo etéreo
E bálsamo dos bálsamos da graça,
Chama secreta que nas almas passa
E deixa nelas um clarão sidéreo.

Cântico de anjos e de arcanjos vagos
Junto às águas sonâmbulas de lagos,
Sob as claras estrelas desprendido…

Selo perpétuo, puro e peregrino
Que prende as almas num igual destino,
Num beijo fecundado num gemido.

Cruz e Sousa (1861 1898)

domingo, 21 de setembro de 2008

Perdão

Seria o beijo
Que te pedi,
Dize, a razão
(outra não vejo)
Por que perdi
Tanta afeição?
Fiz mal, confesso;
Mas esse excesso,
Se o cometi,
Foi por paixão,
Sim, por amor
De quem?... de ti!
Tu pensas, flor
Que a mulher basta
Que seja casta,
Unicamente?
Não basta tal:
Cumpre ser boa,
Ser indulgente.
Fiz-te algum mal?
Pois bem: perdoa!
É tão suave
Ao coração
Mesmo o perdão
De ofensa grave!
Se o alcançasse,
Se o conseguisse,
Quisera então
Beijar-te a mão,
Beijar-te a face...
Beijar? que disse!
(Que indiscrição...)
Perdão! perdão!

João de Deus (1830-1896)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Bambino

E se o ferro ferir
E se a dor perfumar
Um pé de manacá
Que eu sei existir
Em algum lugar

E se eu te machucar
Sem querer atingir
E também magoar
O seio mais lindo que há

E se a brisa soprar
E se ventar a favor
E se o fogo pegar
Quem vai se queimar
De gozo e de dor

E se for pra chorar
E se for ou não for
Vou contigo dançar
E sempre te amar amor

E se o mundo cair
E se o céu despencar
Se rolar vendaval
Temporal carnaval
E se as águas correrem
Pro bem e pro mal

Quando o sol ressurgir
Quando o dia raiar
É menino e menina
Bambino, bambina
Pra quem tem que dar
No final do final

E se a noite pedir
E se a chama apagar
E se tudo dormir
O escuro cobrir
Ninguém mais ficar

Se for pra chorar
E uma rosa se abrir
Pirilampo luzir
Brilhar e sumir no ar

Se tudo falir
O mar acabar
E se eu nunca pagar
O quanto pedi
Pra você me dar

E se a sorte sorrir
O infinito deixar
Vou seguindo seguir
E quero teus lábios beijar

Ernesto Nazareth (1863 - 1934) e Zé Miguel Wisnik

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Saudade

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

Gilka Machado (1893 - 1980)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Tu

Entraste.
A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste,
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhorias exclamaram:
- A esse amá-lo?
Se se atira em cima,
derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu júbilo
esqueci o julgo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio,
tão leve, tão bem me sentia.

Vladimir Maiakovki
(1893 - 1930)

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Último Soneto

Já da noite o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito, embalde num macio encosto,
Tento o sono reter!... Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

Álvares de Azevedo (1831 - 1852)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Casa no Campo

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
Meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais

Zé Rodrix e Tavito

Cidade Oculta

Na cidade só chovia
Noite imensa, só havia
Luminosos, agonia
E a vida escorria pela escuridão

Nossas ruas eram frias
Como os homens desses dias
Engrenagens tão sombrias
Esquecidas pelos deuses
A pulsar em vão

Misteriosamente uma andróide
Gritou docemente
Me mostrou a vida
Me encheu de cores
Desenhando um holograma em meu coração
Com seus olhos foi pintando um dia
Reinventando a alegria, brancas nuvens de verão
E a poesia de repente volta a ter razão

Arrigo Barnabé, Eduardo Gudin e Roberto Riberti

domingo, 14 de setembro de 2008

No meio do caminho...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma povoada de sonhos eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac (1865 - 1918)

Livros e Flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor.

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?

Machado de Assis (1839 - 1908)

sábado, 13 de setembro de 2008

Ó Céus! Que Sinto Nalma!

Ó céus! Que sinto nalma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: - ¨A que se expõe quem não receia
Contemplar Ursulina um só momento!

¨Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e co´ um tiro
Puni tua sacrílega loucura:

De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
A tua linda ingrata algum suspiro.

Bocage (1765- 1805)


sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Procura-se um Amigo...

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinícius de Moraes (1913 - 1980)

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

À Descoberta do Amor

Ensaia um sorriso
e oferece-o a quem não teve nenhum.
Agarra um raio de sol
e desprende-o onde houver noite.
Descobre uma nascente
e nela limpa quem vive na lama.
Toma uma lágrima
e pousa-a em quem nunca chorou.
Ganha coragem
e dá-a a quem não sabe lutar.
Inventa a vida
e conta-a a quem nada compreende.
Enche-te de esperança
e vive á sua luz.
Enriquece-te de bondade
e oferece-a a quem não sabe dar.
Vive com amor
e fá-lo conhecer ao Mundo.

Mahatma Gandhi (1869 - 1948)

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Barcarola

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.

A Lua - globo de louça -
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.

"Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!

Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!

Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte!"

- E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Adeus

ADEUS - Ai criança ingrata!
Pois tu me disseste - adeus -?
Loucura! melhor seria
Separar a terra e os céus.
- Adeus - palavra sombria!
De uma alma gelada e fria
És a derradeira flor.
- Adeus! - miséria! mentira
De um seio que não suspira,
De um coração sem amor.
Ai, Senhor! A rola agreste
Morre se o par lhe faltou.
O raio que abrasa o cedro
A parasita abrasou.
O astro namora o orvalho:
- Um é a estrela do galho,
- Outro o orvalho da amplidão
Mas, à luz do sol nascente,
Morre a estrela - no poente!
O orvalho - morre no chão!
Nunca as neblinas do vale
Souberam dizer-se - adeus -
Se unidas partem da terra,
Perdem-se unidas nos céus.
A onda expira na plaga.. .
Porém vem logo outra vaga
P'ra morrer da mesma dor ...
- Adeus - palavra sombria!
Não digas - adeus -, Maria!
Ou não me fales de amor!

Castro Alves (1847 - 1871)

domingo, 7 de setembro de 2008

Bilhete

Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!

Se me queres,
enfim,

tem de ser bem devagarinho,
amada,

que a vida é breve,
e o amor
mais breve ainda.

Mário Quintana

Espanhola

Por tantas vezes
Eu andei mentindo
Só por não poder
Te ver chorando

Te amo espanhola, te amo espanhola
Se vai chorar, te amo

Sempre assim,
Cai o dia e é assim
Cai a noite e é assim
Essa lua sobre mim
Essa fruta sobre o meu paladar

Nunca mais
Quero ver você me olhar
Sem me enxergar em mim
Eu queria te falar
Eu preciso, eu tenho que te contar

Te amo espanhola, te amo espanhola
Pra que chorar, te amo

Flávio Venturini e Guarabyra

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

É Proibido...

É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,

Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

Pablo Neruda (1904 - 1973)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Coração confiante

O coração que sente vai sozinho,
Arrebatado, sem pavor, sem medo...
Leva dentro de si raro segredo
Que lhe serve de guia no Caminho.

Vai no alvoroço, no celeste vinho
Da luz os bosques acordando cedo,
Quando de cada trêmulo arvoredo
Parte o sonoro e matinal carinho.

E o Coração vai nobre e vai confiante,
Festivo como a flâmula radiante
Agitada bizarra pelos ventos...

Vai palpitando, ardente, emocionado
O velho Coração arrebatado,
Preso por loucos arrebatamentos!

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Vivem em nós inúmeros...

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Fenando Pessoa (1888 - 1935)