terça-feira, 31 de março de 2009

Mors-Amor

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce, 
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente, 
Formidável, mas plácido, no porte, 
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"

Antero de Quental (1842 - 1891)

segunda-feira, 30 de março de 2009

Flor da Mocidade

Eu conheço a mais bela flor;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida, aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor.
Tem do céu a serena cor,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor,
És tu, rosa da mocidade.

Vive às vezes na solidão,
Coma * filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive às vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta já nada val.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.

Machado de Assis (1839 - 1908)

sexta-feira, 27 de março de 2009

Profissão de febre

Quando chove,
Eu chovo,
Faz sol,
Eu faço,
De noite,
Anoiteço,
Tem Deus,
Eu rezo,
Não tem,
Esqueço,
Chove de novo,
De novo, chovo,
Assobio no vento,
Daqui me vejo,
Lá vou eu,
Gesto no movimento.

Paulo Leminski (1944 - 1989)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Canção de Alta Noite

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

Cecilia Meireles (1901 - 1964)

Semper Eadem

Para a amiga Cláudia, pelo seu aniversário, parabéns. Baudelaire (O Maldito) conforme seu pedido, Beijos.

"De onde te vem, responde, essa tristeza infinda
Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?"
- Quando no coração nossa colheita finda,
viver é um mal. Ninguém ignora este segredo.

Uma dor muito simples, nada misteriosa,
A todos familiar, como tua alegria.
Nada queiras saber, minha bela curiosa!
E, embora a voz te seja afável, silencia!

Cala-te tola! alma de tudo embevecida!
Boca de riso ingênuo! Ainda mais que a Vida,
A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.

Deixa-me o coração confiar no que suponho,
Dentro em teus olhos mergulhar como num sonho,
E dormir longo tempo à sombra de teus cílios!

Charles Baudelaire ( 1821 - 1868)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Ainda que mal

Ainda que mal pergunte, 
ainda que mal respondas; 
ainda que mal te entenda, 
ainda que mal repitas; 
ainda que mal insista, 
ainda que mal desculpes; 
ainda que mal me exprima, 
ainda que mal me julgues; 
ainda que mal me mostre, 
ainda que mal me vejas; 
ainda que mal te encare, 
ainda que mal te furtes; 
ainda que mal te siga, 
ainda que mal te voltes; 
ainda que mal te ame, 
ainda que mal o saibas; 
ainda que mal te agarre, 
ainda que mal te mates; 
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio, 
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987)

sábado, 21 de março de 2009

Canção Grata

Por tudo o que me deste
inquietação cuidado
um pouco de ternura
é certo mas tão pouca
Noites de insônia
Pelas ruas como louca
Obrigada, obrigada

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão
Que bem que me faz agora
o mal que me fizeste
Mais forte e mais serena
E livre e descuidada
Sem ironia amor obrigada
Obrigada por tudo o que me deste

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui 

Florbela Espanca (1894 - 1930)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Luz entre sombras

É noite medonha e escura,
Muda como o passamento
Uma só no firmamento
Trêmula estrela fulgura.

Fala aos ecos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E num canto sonolento
Entre as árvores murmura.

Noite que assombra a memória,
Noite que os medos convida,
Erma, triste, merencória.

No entanto...minha alma olvida
Dor que se transforma em glória,
Morte que se rompe em vida.

Machado de Assis (1839 - 1908)

quarta-feira, 18 de março de 2009

Dois cravos roxos

Esta noite, quando, lá fora,
campanários tontos bateram
doze vezes o apelo da hora,
na minha jarra, onde a água chora,
meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos defuntos,
são como beijos que sofreram,
como beijos que enlouqueceram
porque nunca vibraram juntos...
São como a sombra dolorida
de olhos tristes, que se perderam
nas extremidades da vida...
Oh! miséria da despedida...
Meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos, fanados,
crepuscularam, faleceram,
como sonhos que se esqueceram,
alta noite, de olhos fechados...

Eu pensava numa criatura,
quando os campanários bateram...
Tudo agora se me afigura
irremediável desventura...
Irremediável desventura!
Meus dois cravos roxos morreram...

Cecília Meireles (1901 - 1964)

terça-feira, 17 de março de 2009

Espelho

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
 
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

(tradução de Vinicius Dantas)

 Sylvia Plath (1932 - 1963)

sexta-feira, 13 de março de 2009

Se te Amo, Não Sei!

Amar! se te amo, não sei. 
Oiço aí pronunciar 
Essa palavra de modo 
Que não sei o que é amar.

Se amar é sonhar contigo, 
Se é pensar, velando, em ti, 
Se é ter-te n'alma presente 
Todo esquecido de mim! 

Se é cobiçar-te, querer-te 
Como uma bênção dos céus 
A ti somente na terra 
Como lá em cima a Deus; 

Se é dar a vida, o futuro, 
Para dizer que te amei: 
Amo; porém se te amo 
Como oiço dizer, não sei. 

Sei que se um gênio bom me aparecesse 
E tronos, glórias, ilusões floridas, 
E os tesouros da terra me oferecesse 
E as riquezas que o mar tem escondidas; 

E do outro lado a ti somente, e o gozo 
Efêmero e precário e após a morte; 
E me dissesse: "Escolhe" oh! jubiloso, 
Exclamara, senhor da minha sorte! 

"Que tesouro na terra há i que a iguale? 
Quero-a mil vezes, de joelhos sim! 
Bendita a vida que tal preço vale, 
E que merece de acabar assim!" 

Gonçalves Dias (1823 - 1864)

quinta-feira, 12 de março de 2009

A fina, a doce ferida

A fina, a doce ferida 
Que foi a dor do meu gozo
Deixou quebranto amoroso
Na cicatriz dolorida.

Por que ardor pecaminoso
Ateou a esta alma perdida
A fina, a doce ferida
Que foi a dor do meu gozo.

Como uma adaga partida
Purge o golpe voluptuoso...
Que no peito sem repouso
Me arderá por toda a vida
A fina, a doce ferida...

Manuel Bandeira (1886 - 1968)

O coração

O coração é o colibri dourado
Das veigas puras do jardim do céu.
Um - tem o mel da granadilha agreste,
Bebe os perfumes, que a bonina deu.

O outro - voa em mais virentes balças,
Pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel - a que se chama - crenças -,
Vive do aroma - que se diz - amor.

Castro Alves (1847 - 1871)

terça-feira, 10 de março de 2009

Aspiração Suprema

Como os cegos e os nus pede um abrigo 
A alma que vive a tiritar de frio. 
Lembra um arbusto frágil e sombrio 
Que necessita do bom sol amigo.

Tem ais de dor de trêmulo mendigo 
Oscilante, sonâmbulo, erradio. 
É como um tênue, cristalino fio 
D'estrelas, como etéreo e louro trigo.

E a alma aspira o celestial orvalho, 
Aspira o céu, o límpido agasalho, 
sonha, deseja e anseia a luz do Oriente...

Tudo ela inflama de um estranho beijo. 
E este Anseio, este Sonho, este Desejo 
Enche as Esferas soluçantemente. 

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

domingo, 8 de março de 2009

Ao dia internacional da mulher

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou..

Luiz Vaz de Camões (1524 - 1580)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Contudo...

Contudo, contudo, 
Também houve gládios e flâmulas de cores 
Na Primavera do que sonhei de mim. 
Também a esperança 
Orvalhou os campos da minha visão involuntária, 
Também tive quem também me sorrisse. 
Hoje estou como se esse tivesse sido outro. 
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa. 
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo. 
Caí pela escada abaixo subitamente, 
E até o som de cair era a gargalhada da queda. 
Cada degrau era a testemunha importuna e dura 
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse, 
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre, 
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo. 
Sou imparcial como a neve. 
Nunca preferi o pobre ao rico, 
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Fernando Pessoa (1888 - 1935)


Amor da Menina

Se te vejo passar, minha cara indolente,
Ao canto de instrumentos, partido no teto,
Como donaire a fulgir, lenta e harmoniosamente,
O tédio a navegar no teu olhar inquieto;

E se eu contemplo, à luz do gás e que a colora,
Pálida fronte a arder de mórbido aparato,
Em que as tochas da tarde acendem uma aurora,
E estes olhos que atraem, como os de algum retrato,

Eu me digo: Que beleza! E que fresco vestido!
A saudade maciça - um halo de esplendor -
Coroa-a; e o coração, um pêssego ferido,
E o corpo amadurecem para o sábio amor.

És o fruto outonal de sabor soberano?
És o lacrimatório à espera de algum pranto,
Perfume de sonhar num oásis arcano,
Ramalhete de flor ou caricioso manto?

E de olhares eu sei de tristezas iníquas,
Que nada deixam ver por detrás de seus véus;
Escrínios a mofar, medalhões sem relíquias,
Mais ocos, a afundar muito mais do que os céus!

Mas não te basta ser só ilusão imensa
Para num falso coração ter tua presa?
Que importa o que há em ti, de tola indiferença?
A máscara que importa? Amo a tua beleza!

Charles Baudelaire (1821 - 1867)

quarta-feira, 4 de março de 2009

Ar Noturno

Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu! Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu! Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu!

tradução de William Agel de Melo

Federico Garcia Lorca (1898 - 1936)

terça-feira, 3 de março de 2009

Horas Rubras

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Ouço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca misteriosa...
E sou talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca (1894 - 1930)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Ideal

Desde bem cedo me sorriste,
Ó luz da alma contemplativa!
Na minha noite escura e triste
Hás de brilhar, enquanto eu viva.

Astro do enlevo solitário,
Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo.

Tu és, na altura inacessível,
O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!

Por mais que neste inferno pene
E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!

Astro amigo, fulge e cintila.
E roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranqüila,
A extrema-unção do teu reflexo!

Lúcio de Mendonça (1854 - 1909)