sábado, 3 de maio de 2008

O Quereres

Onde queres revólver, sou coqueiro;
Onde queres dinheiro, sou paixão!

Onde queres descanso, sou desejo;
E onde sou só desejo, queres não!

E onde não queres nada, nada falta;
E onde voas bem alto, eu sou o chão;

E onde pisas no chão,
Minha alma salta: e ganha liberdade na amplidão...

Onde queres família, sou maluco;
E onde queres romântico, burguês!

Onde queres leblon, sou pernambuco;
E onde queres eunuco, garanhão!

E onde queres o sim e o não, talvez;
Onde vês, eu não vislumbro razão!

Onde queres o lobo, eu sou o irmão;
E onde queres cowboy, eu sou chinês!

Ah, bruta flor do querer...
Ah, bruta flor, bruta flor!

Onde queres o ato, eu sou o espírito;
E onde queres ternura, eu sou tesão!

Onde queres o livre, decassílabo;
E onde buscas o anjo, eu sou mulher!

Onde queres prazer, sou o que dói;
E onde queres tortura, mansidão!

Onde queres o lar, revolução;
E onde queres bandido, eu sou o herói!

Eu queria querer-te amar o amor,
Construírmos dulcíssima prisão;

E encontrar a mais justa adequação:
Tudo métrica e rima e nunca dor!

Mas a vida é real e é de viés,
E vê só que cilada o amor me armou:

Eu te quero e não me queres como sou;
Não te quero e não me queres como és...

Ah, bruta flor do querer...
Ah, bruta flor, bruta flor!

Onde queres comício, flipper vídeo;
E onde queres romance, rock'n roll!

Onde queres a lua, eu sou o sol;
Onde a pura-natura, o inseticídeo!

E onde queres mistério, eu sou a luz;
Onde queres um canto, o mundo inteiro!

Onde queres quaresma, fevereiro;
E onde queres coqueiro, eu sou obus!

O quereres e o estares sempre a fim,
Do que em mim é em ti tão desigual...

Faz-me querer-te bem;
Querer-te mal:

Bem a ti, mal ao quereres assim:

Infinitivamente impessoal;
E eu querendo querer-te sem ter fim!

E querendo-te,
Aprender o total...

Do querer que há;
E do que não há em mim!

Caetano Veloso

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