quinta-feira, 2 de abril de 2009

Lírica

Dama cruel, quem quer que vós sejais,
Que não quero por hora descobrir-vos, 
Dai-me licença agora para argüir-vos,
Pois para amar-vos sempre ma negais:

Por que razão de ingrata vos prezais,
Não me pagando o zelo de servir-vos? 
Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais.

Não há cousa mais feia na verdade:
Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará, o que é fealdade?

Depois, que sois ingrata me parece,
Que hoje é torpeza o que era então beldade,
Que é flor a ingratidão que em flor fenece.

Namorado, o poeta fala com um arroio

Como corres, arroio fugitivo?
Adverte, pára, pois precipitado
Corres soberbo, como o meu cuidado,
Que sempre a despenhar se corre altivo.

Torna atrás, considera discursivo,
Que esse curso, que levas apressado,
No caminho que empreendes despenhado
Te deixa morto, e me retrata vivo.

Porém corre, não pares, pois o intento,
Que teu desejo conseguir procura,
Logra o ditoso fim do pensamento.

Triste de um pensamento sem ventura,
Que tendo venturoso o nascimento,
Não acha assim ditosa a sepultura.

Efeitos contrários do amor

Ó que cansado trago o sofrimento
Ó que injusta pensão da humana vida,
Que dando-me o tormento sem medida,
Me encurta o desafogo de um contento!

Nasceu para oficina do tormento
Minha alma, a seus desgostos tão unida,
Que por manter-se em posse de afligida
Me concede os pesares de alimento.

Em mim não são as lágrimas bastantes
Contra incêndios, que ardentes me maltratam, 
Nem estes contra aqueles são possantes:

Contrários contra mim em paz se tratam,
E estão em ódio meu tão conspirantes,
Que só por me matarem não se matam.

Gregório de Matos (1623 -1696)

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