quarta-feira, 29 de abril de 2009

A morte para o justo é recompensa

De radiosas virtudes escoltada
Deste imaturo adeus ao mundo triste
Co(m)´a mente no almo pólo, aonde existe
Bem, que sempre se goza e nunca enfada,

À fouce, a segar vidas destinada,
Mansíssima cordeira o colo uniste;
O que é do céu ao céu restituíste,
Restituíste ao nada o que é do nada.

E inda gemo, inda choro, alma querida,
Teu fado amigo, tua dita imensa,
Que em vez de pranto a júbilo convida!

Ah! Pio acordo minha mágoa vença;
É cativeiro para o justo a vida.
A morte para o justo é recompensa.

Bocage (1765 - 1805)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Não sabes

Quanta alta noite n'amplidão flutua
Pálida a lua com fatal palor,
Não sabes, virgem, que eu por ti suspiro
E que deliro a suspirar de amor.

Quando no leito entre sutis cortinas
Tu te reclinas indolente aí,
Ai! Tu não sabes que sozinho e triste
Um ser existe que só pensa em ti.

Lírio dest'alma, sensitiva bela,
És minha estrela, meu viver, meu Deus.
Se olhas - me rio, se sorris - me inspiro,
Choras - deliro por martírios teus.

E tu não sabes deste meu segredo
Ah! tenho medo do teu rir cruel!...
Pois se o desprezo fosse a minha sorte
Bebera a morte neste amargo fel.

Mas dá-me a esp'rança num olhar quebrado,
Num ai magoado, num sorrir dó céu,
Ver-me-ás dizer-te na febril vertigem
"Não sabes, virgem? Meu futuro é teu"!

Castro Alves ( 1847 - 1871)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os olhos dos pobres

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.


De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.


Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.


Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?"


Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

Charles Baudelaire (1821 - 1867)

terça-feira, 14 de abril de 2009

A Fome e o Amor

A um monstro

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta, 
Receando outras mandíbulas a esbangem, 
Os dentes antropófagos que rangem, 
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta, 
Rugindo, enquanto as almas se confrangem, 
Todas as danações sexuais que abrangem 
A apolínica besta famulenta! 

Ambos assim, tragando a ambiência vasta, 
No desembestamento que os arrasta, 
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos 
A alegoria do que outrora fomos 
E a imagem bronca do que inda hoje sois!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)


segunda-feira, 13 de abril de 2009

O meu maior bem

Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente.

Mesmo a beijar-me, a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Pousa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...

Mas que me importa a mim que me não queiras,
Se esta pena, esta dor, estas caseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo,

Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?

Florbela Espanca (1894 - 1930)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Desejo

Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!

Gonçalves Dias (1823 - 1864)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Soneto I

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Tubal no empório celebrado,
Em sangüíneo caráter foi marcado
Pelos destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado
Dos irmãos, e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

Bocage (1765 - 1805)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Alma Fatigada

Nem dormir nem morrer na fria Eternidade! 
Mas repousar um pouco e repousar um tanto, 
Os olhos enxugar das convulsões do pranto, 
Enxugar e sentir a ideal serenidade.

A graça do consolo e da tranqüilidade 
De um céu de carinhoso e perfumado encanto, 
Mas sem nenhum carnal e mórbido quebranto, 
Sem o tédio senil da vã perpetuidade.

Um sonho lirial d'estrelas desoladas 
Onde as almas febris, exaustas, fatigadas 
Possam se recordar e repousar tranqüilas!

Um descanso de Amor, de celestes miragens, 
Onde eu goze outra luz de místicas paisagens 
E nunca mais pressinta o remexer de argilas! 

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

sábado, 4 de abril de 2009

Em que pensas

Uma pequena homenagem!

Parabéns a minha amiga Márcia, felicidades.


Tu pensas na flor que nasce
Menos bela do que tu!
Na borboleta vivace
Beijando teu colo nu!

No raio da lua algente
Que bebe no teu olhar ...
Como um cisne alvinitente
No cálix do nenufar.

Nas orvalhadas cantigas
Destas selvagens manhãs...
Nas flores - tuas amigas!
Nas pombas - tuas írmãs!

Tu pensas, é Fiorentina,
No gênio de teu país...
Que uma harpa soberba afina
Em cada seio de atriz.

Na esteira de luz que arrasta
A glória no louco afã!
Nos diademas da Pasta...
Nas palmas de Malibran!

Pensas nos climas distantes
Que um sol vermelho queimou...
Nesses mares ofegantes
Que o teu navio cortou!

Na bruma que lá s'escoa...
Na estrela que morre além...
Na Santa que te abençoa,...
Na Santa que te quer bem!...

Tu pensas n’Arte sagrada,
Nesta severa mulher...
Mais que Débora inspirada...
Mais rutilante que Ester.

Tu pensas em mil quimeras,
Nos orientes do amor.
No vacilar das esferas
Pelas noites de languor.

Nalgum sonho peregrino
Que o teu ideal criou.
Na vassalagem, no hino...
Que a multidão te atirou!

Neste condão que teus dedos
Têm de domar os leões...
No pipilar de uns segredos,
No musgo dos corações...

No livro - que tens no colo!
Nos versos - que tens aos pés!
Nos belos gelos do pólo...
Como teus seios cruéis.

Pensas em tudo que é belo,
Puro, brilhante, ideal...
No teu soberbo cabelo!
No teu dorso escultural!

Nos tesouros de ventura
Que a um'alma podias dar;
No alento da boca pura...
Na graça do puro olhar...

Pensas em tudo que é nobre,
Que entorna luz e fulgor!
Nas minas, que o mar encobre!
Nas avarezas do amor!

Pensas em tudo que invade
O seio de um Querubim!...
Deus! Amor! Felicidade!
... Só tu não pensas em mim!...

Castro Alves (1847 - 1871)



quinta-feira, 2 de abril de 2009

Lírica

Dama cruel, quem quer que vós sejais,
Que não quero por hora descobrir-vos, 
Dai-me licença agora para argüir-vos,
Pois para amar-vos sempre ma negais:

Por que razão de ingrata vos prezais,
Não me pagando o zelo de servir-vos? 
Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais.

Não há cousa mais feia na verdade:
Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará, o que é fealdade?

Depois, que sois ingrata me parece,
Que hoje é torpeza o que era então beldade,
Que é flor a ingratidão que em flor fenece.

Namorado, o poeta fala com um arroio

Como corres, arroio fugitivo?
Adverte, pára, pois precipitado
Corres soberbo, como o meu cuidado,
Que sempre a despenhar se corre altivo.

Torna atrás, considera discursivo,
Que esse curso, que levas apressado,
No caminho que empreendes despenhado
Te deixa morto, e me retrata vivo.

Porém corre, não pares, pois o intento,
Que teu desejo conseguir procura,
Logra o ditoso fim do pensamento.

Triste de um pensamento sem ventura,
Que tendo venturoso o nascimento,
Não acha assim ditosa a sepultura.

Efeitos contrários do amor

Ó que cansado trago o sofrimento
Ó que injusta pensão da humana vida,
Que dando-me o tormento sem medida,
Me encurta o desafogo de um contento!

Nasceu para oficina do tormento
Minha alma, a seus desgostos tão unida,
Que por manter-se em posse de afligida
Me concede os pesares de alimento.

Em mim não são as lágrimas bastantes
Contra incêndios, que ardentes me maltratam, 
Nem estes contra aqueles são possantes:

Contrários contra mim em paz se tratam,
E estão em ódio meu tão conspirantes,
Que só por me matarem não se matam.

Gregório de Matos (1623 -1696)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Rosa e Lírio

A rosa
É formosa
Bem sei.
Porque lhe chamam - flor
D'amor,
Não sei.

A flor,
Bem de amor
É o lírio;
Tem mel no aroma, - dor
Na cor
O lírio.

Se o cheiro
É fagueiro
Na rosa;
Se é de beleza - mor
Primor
A rosa:

No lírio
O martírio
Que é meu
Pintado vejo: - cor
E ardor
É o meu.

A rosa
É formosa,
Bem sei...
E será de outros flor
D'amor...
Não sei.

Almeida Garrett (1799 - 1854)