quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Filosofia

O mundo me condena, e ninguém tem pena 

Falando sempre mal do meu nome

Deixando de saber se eu vou morrer de sede 

Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia hoje me auxilia 

A viver indiferente assim

Nesta prontidão sem fim

Vou fingindo que sou rico

Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga 

Que a sociedade é minha inimiga 

Pois cantando neste mundo

Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo

Quanto a você da aristocracia 

Que tem dinheiro, mas não compra alegria

Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente

Que cultiva hipocrisia 

Noel Rosa (1910 - 1937)

Último Desejo

Nosso amor que eu não esqueço 
E que teve seu começo 
Numa festa de São João 
Morre hoje sem foguete 
Sem retrato e sem bilhete 
Sem luar sem violão 
Perto de você me calo 
Tudo penso nada falo 
Tenho medo de chorar 
Nunca mais quero seu beijo 
Mas meu ultimo desejo 
Você não pode negar 
Se alguma pessoa amiga 
Pedir que você Ihe diga 
Se você me quer ou não 
Diga, que você me adora 
Que você lamenta e chora 
A nossa separaçao 
E as pessoas que eu detesto 
Diga sempre que eu não presto 
Que o meu lar é o botequim 
Que eu arruinei sua vida 
Que eu não mereço a comida 
Que você pagou prá mim
Noel Rosa (1910 - 1937)

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A umas Saudades

Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter,
ide?vos, minhas saudades
a meu amor socorrer.

Em o mar do meu tormento
em que padecer me vejo
já que amante me desejo
navegue o meu pensamento:
meus suspiros, formai vento,
com que me façais ir ter
onde me apeteço ver;
e diga minha alma assi:
Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter.

Ide donde meu amor
apesar desta distância
não há perdido constância
nem demitido o rigor:
antes é tão superior
que a si se quer exceder,
e se não desfalecer
em tantas adversidades,
Ide?

vos minhas saudades
a meu amor socorrer.

Gregório de Matos (1623 - 1696)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo 
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: 
quero solidão. 
Meu caminho é sem marcos nem paisagens. 
E como o conheces ? - me perguntarão. - 
Por não Ter palavras, por não ter imagem. 
Nenhum inimigo e nenhum irmão. 
Que procuras ? 
Tudo. 
Que desejas ? 
Nada. 
Viajo sozinha com o meu coração. 
Não ando perdida, mas desencontrada. 
Levo o meu rumo na minha mão. 
A memória voou da minha fronte. 
Voou meu amor, minha imaginação ... 
Talvez eu morra antes do horizonte. 
Memória, amor e o resto onde estarão? 
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. 
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão ! 
Estandarte triste de uma estranha guerra ... )
Quero solidão. 

Cecília Meireles (1901 - 1964)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Morte, juízo, inferno e paraíso

Em que estado meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso, e duro!
Delido o coração de um fogo impuro
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo,
Quando te encontro mais, mais te procuro,
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam da alma a paz, e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados.

E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, juízo, inferno e paraíso.

Bocage (1765 - 1805)


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Ansiedade

Esta ansiedade que nos enche o peito 
Enche o céu, enche o mar, fecunda a terra. 
Ela os germens puríssimos encerra 
Do Sentimento límpido, perfeito.

Em jorros cristalinos o direito, 
A paz vencendo as convulsões da guerra, 
A liberdade que abre as asas e erra 
Pelos caminhos do Infinito eleito.

Tudo na mesma ansiedade gira, 
Rola no Espaço, dentre a luz suspira 
E chora, chora, amargamente chora...

Tudo nos turbilhões da Imensidade 
Se confunde na trágica ansiedade 
Que almas, estrelas, amplidões devora. 

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Sonho. Não sei quem sou...

Sonho. Não sei quem sou neste momento. 
Durmo sentindo-me. Na hora calma 
Meu pensamento esquece o pensamento, 
Minha alma não tem alma. 
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo 
Parece que erro. Sinto que não sei. 
Nada quero nem tenho nem recordo. 
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões, 
Fantasmas me limitam e me contêm. 
Dorme insciente de alheios corações, 
Coração de ninguém. 

Fernando Pessoa (1888 - 1935)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Retrato Fiel

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Gilka Machado (1893 – 1980)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Querer

Não te quero senão porque te quero
E de querer-te a não querer-te chego
E de esperar-te quando não te espero
Passa meu coração do frio ao fogo.
Te quero só porque a ti te quero,
Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
E a medida de meu amor viageiro
É não ver-te e amar-te como um cego.
Talvez consumirá a luz de janeiro
Seu raio cruel, meu coração inteiro,
Roubando-me a chave do sossego.
Nesta história só eu morro
E morrerei de amor porque te quero,
Porque te quero, amor, a sangue e a fogo.

Pablo Neruda (1904 - 1973)

Sempre

Nem te vejo por entre a gelosia;

Nunca no teu olhar o meu repousa;

Nunca te posso ver, e todavia,

Eu não vejo outra cousa!

 

João de Deus (1830 – 1896)

sábado, 20 de dezembro de 2008

Ontem à noite

Ontem — sozinhos — eu e tu, sentados, 
Nos contemplamos quando a noite veio: 
Queixosa e mansa a viração dos prados 
Beijava o rosto e te afagava o seio, 
Que palpitava como ao longe o mar... 
E lá no céu esses rubis pregados 
Brilhavam menos que teu vivo olhar! 

Co´a mão nas minhas, no silêncio augusto, 
Tu me falavas sem mentido susto, 
E nunca a virgem que a paixão revela, 
Passou-me em sonhos tão formosa assim!

(Tradução de Casimiro de Abreu)


Victor Hugo (1802 - 1885)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Sed Non Satiata

Bizarra divindade, cor da noite escura,
Cujo perfume sabe a almíscar e a havana,
Obra de algum obi, o Fausto da savana,
Feiticeira sombria, criança de hora impura,

Prefiro ao ópio, ao vinho, à bêbeda loucura,
O elixir dessa boca onde o amor se engalana;
Se meus desejos vão a ti em caravana,
É do frescor dos olhos teus que ando à procura.

Que esses dois olhos negros, poros de tua alma,
Ó demônio impiedoso! Às chamas tragam calma;
Não sou Estige para lúbrico abraçar-te,

Eu não posso, ai de mim, ó Megera sensual,
Para dobrar-te a fúria e à parede encostar-te,
Qual Prosérpina arder em teu leito infernal.

Charles Baudelaire (1821 - 1867)


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Se te amo, não sei!

Amar! se te amo, não sei. 
Oiço aí pronunciar 
Essa palavra de modo 
Que não sei o que é amar.

Se amar é sonhar contigo, 
Se é pensar, velando, em ti, 
Se é ter-te n'alma presente 
Todo esquecido de mim! 

Se é cobiçar-te, querer-te 
Como uma bênção dos céus 
A ti somente na terra 
Como lá em cima a Deus; 

Se é dar a vida, o futuro, 
Para dizer que te amei: 
Amo; porém se te amo 
Como oiço dizer, não sei. 

Sei que se um gênio bom me aparecesse 
E tronos, glórias, ilusões floridas, 
E os tesouros da terra me oferecesse 
E as riquezas que o mar tem escondidas; 

E do outro lado a ti somente, e o gozo 
Efêmero e precário e após a morte; 
E me dissesse: "Escolhe" oh! jubiloso, 
Exclamara, senhor da minha sorte! 

"Que tesouro na terra há i que a iguale? 
Quero-a mil vezes, de joelhos sim! 
Bendita a vida que tal preço vale, 
E que merece de acabar assim!" 

Gonçalves Dias (1823 - 1864)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fanatismo

Se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca (1894 -1930)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Desenhos com areia...

Há um não sei que...

Há um não sei que de fascinante
no teu modo autoritário de falar.
Há qualquer coisa provocante
na força penetrante do teu olhar.
Há uma promessa insinuante
no teu jeito de andar.
E em cada gesto uma suavidade cativante
uma ânsia escondida de quem sabe
provocar.
E o que mais me perturba, francamente
eu queria agora te contar
mas é tão imenso e tão embriagante
que eu tenho medo de falar!

"Eu te desejo!"

Cassandra Rios (1932 - 2002)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Cárcere das Almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, 
Soluçando nas trevas, entre as grades 
Do calabouço olhando imensidades, 
Mares, estrelas, tardes, natureza. 

Tudo se veste de uma igual grandeza 
Quando a alma entre grilhões as liberdades 
Sonha e, sonhando, as imortalidades 
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza. 

Ó almas presas, mudas e fechadas 
Nas prisões colossais e abandonadas, 
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo! 

Nesses silêncios solitários, graves, 
que chaveiro do Céu possui as chaves 
para abrir-vos as portas do Mistério?! 

Cruz e Souza (1861 - 1898)

Espetacular!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Meus oito anos

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida, 
Da minha infância querida 
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores, 
Naquelas tardes fagueiras 
À sombra das bananeiras, 
Debaixo dos laranjais! 
Como são belos os dias 
Do despontar da existência! 
- Respira a alma inocência 
Como perfumes a flor; 
O mar é - lago sereno, 
O céu - um manto azulado, 
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida, 
Que noites de melodia 
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar! 
O céu bordado d'estrelas, 
A terra de aromas cheia 
As ondas beijando a areia 
E a lua beijando o mar! 
Oh! dias da minha infância! 
Oh! meu céu de primavera! 
Que doce a vida não era 
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã! 
Livre filho das montanhas, 
Eu ia bem satisfeito, 
Da camisa aberta o peito, 
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas 
A roda das cachoeiras, 
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis! 
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas, 
Trepava a tirar as mangas, 
Brincava à beira do mar; 
Rezava às Ave-Marias, 
Achava o céu sempre lindo. 
Adormecia sorrindo 
E despertava a cantar! 
................................ 
Oh! que saudades que tenho 
Da aurora da minha vida, 
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais! 
- Que amor, que sonhos, que flores, 
Naquelas tardes fagueiras 
A sombra das bananeiras 
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu (1839 - 1860)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Rasga meus versos

LIV

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultraje! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Arentino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade.

Bocage (1765 - 1805)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Fragmento de Um Canto em Cordas de Bronze

Deixai que o pranto esse palor me queime,
Deixai que as fibras que estalaram dores
Desse maldito coração me vibrem
A canção dos meus últimos amores!

Da delirante embriaguez de bardo
Sonhos em que afoguei o ardor da vida,
Ardente orvalhos de febris pranteios,
Que lucro à alma descrida?

Deixai que chore pois. - Nem loucas venham
Consolações a importunar-me as dores:
Quero a sós murmurá-la à noite escura
A canção dos meus últimos amores!

Da ventania às rápidas lufadas
A vida maldirei em meu tormento
- Que é falsa, como em prostitutos lábios
Um ósculo visguento.

Escárnio! Para essa muitas virgens
Como flores - românticas e belas -
Mas que no seio o coração tem árido,
Insensível e estúpido como elas!

Que agreste vibrar, ruja-me as cordas
Mais selvagens desta harpa - quero acentos
De áspero som como o ranger dos mastros
Na orquestra dos ventos!

Corre feio o trovão nos céus bramindo;
Vão torvos do relâmpago os livores:
Quero às rajadas do tufão gemê-la,
A canção dos meus últimos amores!

Vem, pois, meu fulvo cão! ergue-te, asinha,
Meu derradeiro e solitário amigo!
- Quero me ir embrenhar pelos desvios
Da serra - ao desabrigo...

Álvares de Azevedo (1831 - 1832)

sábado, 6 de dezembro de 2008

Salve linda canção sem esperança

Entre canções que ouvi
Entre notícias que li
Entre risadas fiquei
Na claridade esperei
Você não veio
Medo ou receio
Trajes bonitos modernos
Um colorido com vida
Um afagar de outro humano
Eu sei, bem sei, fui traído
Mas tudo é beleza
Mais vale a franqueza
Eu comunico, não peço
Espero que nesse universo
Alguém lhe queira como eu
Faço de mim o que posso
E de vocês qualquer troço
Pra resolver quando se enganam

Luiz Melodia

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Apontamentos

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Fernando Pessoa (1888 - 1935)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Gozo e dor

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.

Almeida Garret (1799 - 1854)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Não Passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987)

Utilidade Pública