quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Da Espécie

A rosa atrai a rosa.
Por enredos e meandros 
de essência.
A áurea rosa, a fulva, a rubra,
na expectativa da mais pura.
E são vergéis convergindo
para abertas campinas
na milenar procura
de uma fórmula mágica
paradigma da espécie.
Existe a branca, a nívea rosa
de perfeição una e perene
ou apenas a imagem
que deriva do anelo?
O aroma, a seiva, a força,
eu os sinto latentes
a presumir da forma para o enleio.
E entre mil rosas consagradas
à rendição do redil,
existe a rosa selvagem
que se reclina sobre o abismo.
A que vai ao acaso
de crisol em crisol
para que brote a transcendente
rosa com que sonha a rosa.

Henriqueta Lisboa (1904 - 1985)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um dia

Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra, é bobagem.
Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela... 
Um dia nós percebemos que as mulheres tem extinto "caçador" e fazem qualquer homem sofrer... 
Um dia descobrimos que se apaixonar é inevitável... 
Um dia percebemos que as melhores provas de amor são as mais simples... 
Um dia percebemos que o comum não nos atrai... 
Um dia saberemos que ser classificado como o "bonzinho" não é bom... 
Um dia perceberemos que a pessoa que nunca te liga é a que mais pensa em você... 
Um dia saberemos a importância da frase: "Tu se tornas eternamente responsável por aquilo que cativas..." 
Um dia percebemos que somos muito importante para alguém mas não damos valor a isso... 
Um dia percebemos como aquele amigo faz falta, mas ai já é tarde demais... 
Enfim...
um dia descobrimos que apesar de viver quase um século 
esse tempo todo não é suficiente 
para realizarmos todos os nossos sonhos, 
para beijarmos todas as bocas que nos atraem, 
para dizer tudo o que tem que ser dito.. 
O jeito é: ou nos conformamos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutar para realizar todas as nossas loucuras... 
Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação. 

Mário Quintana (1906 - 1994)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Quantas vezes amor, me tens ferido?

Quantas vezes , Amor, me tens ferido ? 
Quantas vezes, Razão, me tens curado ?
 
Quão fácil de um estado a outro estado
 
O mortal sem querer é conduzido !

Tal, que em grau venerando, alto e luzido, 
Como que até reagia a mão do fado,
 
Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado
 
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte, 
Que variedade inclui esta medida,
 
Este intervalo de existência à morte !

Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida ; 
É da lei da Natureza ,é lei da sorte
 
Que seja o mal e o bem matriz da vida.

Bocage (1765 - 1805)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O vinho dos amantes

Hoje o espaço é de luzes cheio!
Sem esporas, rédeas e freio,
Vamos a cavalo a um destino
Que o vinho torna um céu divino!

Como dois anjos que tortura
Uma implacável calentura,
No cristal azul da paisagem
Sigamos a longe miragem!

Molemente presos num elo
Dum turbilhão orientado;
Num pesadelo paralelo,

Minha irmã, junto a mim, a nado,
Fugiremos sempre risonhos
Ao paraíso dos meus sonhos!

Charles Baudelaire (1821 - 1867)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Soneto

A cada canto um grande conselheiro, 
Que nos quer governar cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha, 
E podem governar o mundo inteiro. 

Em cada porta um freqüentado olheiro, 
Que a vida do vizinho, e da vizinha 
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro. 

Muitos Mulatos desavergonhados, 
Trazidos pelos pés os homens nobres, 
Posta nas palmas toda a picardia. 

Estupendas usuras nos mercados, 
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos (1623 - 1696)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Anjo

Anjo "Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca -
O sangue aumenta da vergonha a bava.
"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?

Desportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...
"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!. . . "

Castro Alves (1847 - 1871)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Simpatia

Simpatia - é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.


Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.


São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.


Simpatia - meu anjinho,
É o canto de passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'agosto
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é quase amor!

Casimiro de Abreu (1839 - 1860)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Novas Poesias Inéditas

Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem acabei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é, 
Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou. 
Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que segue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti. 
Releio e digo : "Fui eu ?" 
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa (1888 - 1935)


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Benditas Cadeias!

Quando vou pela Luz arrebatado, 
Escravo dos mais puros sentimentos 
Levo secretos estremecimentos 
Como quem entra em mágico Noivado. 

Cerca-me o mundo mais transfigurado 
Nesses sutis e cândidos momentos... 
Meus olhos, minha boca vão sedentos 
De luz, todo o meu ser iluminado. 

Fico feliz por me sentir escravo 
De um Encanto maior entre os Encantos, 
Livre, na culpa, do mais leve travo. 

De ver minh'alma com tais sonhos, tantos, 
E que por fim me purifico e lavo 
Na água do mais consolador dos prantos 

Cruz e Sousa (1861 -1898)


terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca (1894 - 1930)

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Allegro

Sente como vibra
Doidamente em nós
Um vento feroz
Estorcendo a fibra

Dos caules informes
E as plantas carnívoras
De bocas enormes
Lutam contra as víboras

E os rios soturnos
Ouve como vazam
A água corrompida

E as sombras se casam
Nos raios noturnos
Da lua perdida.

Vinícius de Moraes (1913 - 1980)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O poeta pede ao seu amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

tradução de William Agel de Melo

Federico Garcia Lorca (1898 - 1936)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Toda Ela

O Demônio em meu quarto salta
Esta manhã para me ver
E, tentando apanhar-me em falta,
Diz-me: "Eu só queria saber,

Entre todas as coisas raras
De que é pródigo seu feitiço,
Entre as jóias negras ou claras
Que ao corpo lhe dão tanto viço,

Qual a mais sublime."- ó minha alma!
Respondeste ao Tinhoso então:
"Porque Ela é um bálsamo que acalma,
Não pode haver predileção.

E como tudo me extasia,
Não sei se nela algo me enfara.
Ela deslumbra como o Dia
E como a Noite nos ampara.

Seu corpo esplêndido é regido
Por harmonias tão concordes
Que nunca pôde o humano ouvido
Escolher um dentre os acordes.

Ó mística transmutação
Que os sentidos num só resume!
Seu hálito faz a canção
E sua voz faz o perfume!"

Charles Baudelaire (1821 - 1867)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Nascemos para Amar

Nascemos para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços da ternura.
Tu és doce atrativo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão nalma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na idéia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Bocage (1765 - 1805)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Asas Abertas

As asas da minh'alma estão abertas! 
Podes te agasalhar no meu Carinho, 
Abrigar-te de frios no meu Ninho 
Com as tuas asas trêmulas, incertas.

Tu'alma lembra vastidões desertas 
Onde tudo é gelado e é só espinho. 
Mas na minh'alma encontrarás o Vinho 
e as graças todas do Conforto certas.

Vem! Há em mim o eterno Amor imenso 
Que vai tudo florindo e fecundando 
E sobe aos céus como sagrado incenso.

Eis a minh'alma, as asas palpitando 
Com a saudade de agitado lenço 
o segredo dos longes procurando... 

Cruz e Sousa (1861 - 1898)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Renúncia

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e dalma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...

Manuel Bandeira (1886 - 1968)

Às Vezes

Às vezes tenho idéias felizes, 
Idéias subitamente felizes, em idéias 
E nas palavras em que naturalmente se despegam... 

Depois de escrever, leio... 
Por que escrevi isto? 
Onde fui buscar isto? 
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu... 
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta 
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

Fernando Pessoa (1888 - 1935)